João Grosso, ator |
Sábado, Teatro Aveirense, às 16h00.
É com «olhos delicados,
refinados, esguios e citadinos» que o sujeito poético de
«Manucure» se nos apresenta. Sentado a uma mesa de café, numa atitude de
desinteresse e entediamento, sonhando estar polindo as suas unhas (melhor,
«sensacionando» estar polindo as suas unhas), vemo-lo em «bocejos
amarelos», a meio de um dia «brutal, provinciano e democrático». Nesta
auto-caracterização do sujeito lírico (já actor, porque máscara), representando
ele próprio um papel, entrecruzam-se a ambição modernista, a pose esteticista e
uma singular identificação com o feminino, que Sá-Carneiro enunciaria numa
carta de 1914, dirigida a Fernando Pessoa, em que se imagina «uma rapariga
estrangeira, de unhas polidas».
Significativamente, a questão do
fingimento surge desde logo enunciada por via daquela que proponho como
metáfora organizadora do poema: o verniz. Sobre o significado de «manicuro», o
dicionário informa: «aquele que se dedica ao tratamento das mãos ou das unhas
das mãos». ... Ora o poema de Mário Sá-Carneiro inicia-se justamente por essa
sensação de polir as unhas, metáfora para depurar, mas também para mascarar e
ainda – porque o verniz, mais tarde ou mais cedo, inevitavelmente estala – para
rasgar e fragmentar. Não é, porém, exactamente a polir as unhas que este
sujeito poético se nos apresenta; é a sentir-se poli-las. O que é importante,
porque coloca desde logo esse inevitável distanciamento entre um «eu» e um
«mim», tão fundamental para o funcionamento de um texto a que Fernando Pessoa
chamaria poema «semi-futurista», fragmentado, partido ao meio, de facto, até na
distribuição por duas grandes linhas estéticas, uma ligada ainda à grande
tradição romântica e simbolista e a outra ligada ao futurismo.
A nossa leitura de
«Manucure» parece nunca ter conseguido ficar totalmente imune à conhecida
afirmação de Pessoa de que a intenção do poema era a de «blague» ou à sua
observação de que a edição póstuma da obra de Sá-Carneiro incluiria o poema
«não como arte, porém como simples curiosidade». A suposta ausência de
seriedade do texto estaria, obviamente, na sua dimensão futurista e na
manifesta presença de técnicas de composição que, despertando embora o
interesse de Sá-Carneiro e Pessoa, não seriam nunca as predominantemente por
eles exploradas. E, todavia, o poema liga-se à definição de beleza enunciada
por Sá-Carneiro, em carta a Pessoa, em 1915: «Para mim basta-me a beleza –
mesmo errada, fundamentalmente errada. Mas beleza: beleza retumbante de
destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores – muito verniz e
muito ouro: teatro de magia e apoteose com rodas de fogo e corpos nus». Da
afirmação de Sá-Carneiro retenho quatro expressões que encontram eco ao longo
de «Manucure»: «beleza errada», «teatro», «apoteose», e, naturalmente, «muito
verniz». Assim, o poema nunca poderia ser lido como esteticamente equilibrado,
sendo antes encenação paródica da convivência chocante do extremo tédio e do
frémito extremo, da transformação do pendor decadente e dos anseios
pós-simbolistas em exaltação verbal, em «passo de corrida, [em] salto mortal,
[n]a bofetada e [n]o murro», como o desejava Marinetti; e também encenação
irónica dessa diferença entre o Eu e o Mim, vivendo do simulacro, traduzido no
extremo da euforia apoteótica, que é anunciada até pela maisculada «APOTEOSE»
... – tudo convenientemente polido, envernizado, «manicurado».
...
Retorno à importância do
verniz enquanto metáfora aglutinadora do texto. É que o verniz funciona a
vários níveis. Em primeiro lugar, pode aplicar-se à primeira parte do
poema, dele se relevando a sua característica parisiense, e, portanto,
refinada, decadente: é o esteta que, «sempre na sensação de polir as [suas]
unhas», de «as pintar com um verniz parisiense», está nos antípodas dos amigos
«trigueiros, naturais, de bigodes fartos», «que escrevem mas têm partido
político / E assistem a congressos republicanos, / Vão às mulheres, gostam de
vinho tinto, / De peros ou de sardinhas fritas» (nesse sentido, o verniz emerge
como paradigma da oposição entre o pragamatismo literário e a pureza da arte);
ou é o esteta, fremindo com «obsess[ões] déb[eis]», «espelhos vagos», «leve[s]
inflex[ões]», «finos arrepios», «inatingív[eis] deslocamento[s]», que, suspenso
o tempo, depõe as limas, as tesouras, os «godets de verniz, / os polidores da
[sua] sensação» e enceta a viagem para «vértices brutais», viagem acompanhada
da «beleza futurista das mercadorias». Num e noutro caso, o verniz representa a
dimensão cultural, civilizada, verbalmente expressa pelas imagens vagas,
delicadas, refinadas, depois transformadas na brutalidade da indústria e do
comércio modernos, manufacturados, mas também verbalmente servidos pelas mais
básicas componentes frásicas, pelos gritos, pelas onomatopeias, pelo delírio
selvático. Mas pode o caso inverter-se e, assim, num adicional círculo de
reverberações, o verniz representar igualmente o trabalho existente na
«estética futurista», a «nova sensibilidade tipográfica», o supérfluo dos
«asteriscos – e as aspas...os acentos...», «os puzzle» frívolos da pontuação»,
os «ornamentos tipográficos», os «altos relevos, ornamentações», uma outra
beleza metamorfoseada, «[p]ois toda esta Beleza ondeia lá também». É, então,
neste envernizamento diverso, que é possível ao sujeito lírico esquecer não a
pintura das unhas, mas a ideia (antes a sensação) de as haver pintado. E
terminar, não com «a paz que ultrapassa o conhecimento», como acontece no poema
de Elliot, mas no mais absoluto frenesi que está para lá da verbalização.
E, se as onomatopeias com que o
poema fecha, «Zing-Tang, Zing-Tang, Tang, Tang, Tang», evocam o «Zang, Tumb
Tuum», de Marinetti, a onomatopeia final «Prá Á Kk», seguida de exclamação e
reticências, evoca, na sequência, o som de um elástico que se parte, ou de um
chicote a estalar (desejado acompanhamento fúnebre expresso no poema «Fim») –
ou, mais imaginativamente, o som do verniz que estala e se fragmenta. ...
Ana Luísa Amaral
Agradecemos à poeta Ana
Luísa Amaral a amabilidade de nos ter autorizado usar excertos do seu ensaio
sobre ”MANUCURE”, publicado em “SÉCULO DE OURO, ANTOLOGIA CRÍTICA DA POESIA
PORTUGUESA DO SÉCULO XX”, Organização de Osvaldo Silvestre e Pedro Serra,
Angelus Novus Editora e Edições Cotovia, Lda, Lisboa, 2002.